sábado, 23 de abril de 2011

Sobre a nova proposta de plebiscito

Mais uma vez a hipocrisia legislativa grassa em nosso país, afrontando acintosamente a capacidade de raciocínio crítico de todos nós. Cada nova tragédia desencadeia a avalanche verborrágica eleitoreira a o incansável e dolorido massacre midiático. Não podia ser diferente com chacina dos estudantes da escola de Realengo. Novamente se descute alterações nas leis, com a máxima urgência, pois não se pode deixar que o colega se adiante nas ideias. Plebscito. Esta é a palavra que está na ordem do dia. Vamos decidir (de novo) se a venda de armas será proibida no Brasil. Ora, será que a violência urbana imprescinde da anuência do Estado para existir? Pessoas que fazem uso de arma de fogo para fins criminosos realmente vão comprar armas no comércio legl? Não é com novas leis ou embargos que se resolvem os problemas nacionais. Farto e confuso já é o nosso acervo legislativo. Mister que as leis sejam aplicadas e que as pessoas tenham, se não certeza, pelo menos receio plausível de sofrer as sanções legais respectivamente cominadas. No último domingo (10/04/2011) a rede Record exibiu uma reportagem de fôlego sobre a “Cracolândia”, a qual dá a dimensão real da sensação de impunidade que, sem a menor margem para dúvidas, incentiva práticas ilícitas. O delinquente acredita que não será pego; se for pego, não será processado; se processado, não será condenado (adequadamente); se condenado, não cumprirá sua pena; se cumprir a pena, pasmem, virará herói nacional . É ela, a impunidade, a inação estatal o móvel da criminalidade. É ela que arma e instiga a delinquência, que garante liberdade de ação a traficantes (inclusive os institucionalizados) de armas, as quais vão parar nas mão de criminosos e psicóticos. É a certeza de que não haverá atuação do Estado que garante o suprimento de armas, de entorpecentes na “cracolândia” paulistana e nos demais pontos de vendas de drogas do país. Inócuo qualquer pedido de justiça para as vítimas de Realengo. Não há justiça possível para o caso. Tão inútil quanto são as várias ideias de desarmamento. Somente a certeza da punição será capaz de inibir a ação de vendedores de armas ilegais. Que fim levou a “Operação Guilhotina” e tantas outras com nome pomposo? Onde está a continuidade do processo repressivo? A poeira já abaixou? Não sejamos tolos em franquear mais um delírio político despido de qualquer eficácia. Exijamos, ao contrário, efetividade punitiva. É certo que não se pode evitar que psicóticos, esquizofrênicos, psicopatas ou seja lá o que for, resolvam tornar-se franco atiradores, mas é possível evitar-se que tais pessoas tenham acesso a meios eficazes para consumar seu desiderato.

O PRINCÍPIO DA IGUALDADE COMO RAZÃO ESSENCIAL DO PRINCÍPIO DA VULNERABILIDADE NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR



“Se você encontra uma porta a sua
frente, pode abri-la ou não. Se você
abrir a porta, pode ou não entrar e
uma nova sala. Para entrar, você vai ter
de vencer a dúvida, o titubeio ou o
medo. Se você venceu, dá um grande
passo: nesta sala, vive-se.
Mas tem um preço: inúmeras outras
portas que você descobre.
O grande segredo é saber: quando e
Qual porta deve ser aberta.”
(IÇAMI TIBA, A Porta)

É de sabença comezinha que os princípios constitucionais traduzem-se na razão de ser de todas as normas infraconstitucionais, mormente o princípio da dignidade humana que tem como bastião o princípio da igualdade. Eis que tal princípio está consagrado não apenas no seu artigo 5º, mas espraiado, ainda que implicitamente, em todo texto magno.

Destarte, sob pena de abraçarmos uma exegese eminentemente literal e gramatical do texto constitucional e ignorar a plenitude interrelacional do Direito, faz-se mister a consideração de que o princípio da vulnerabiliade (art. 4º, I, CDC) trata-se de uma espécie do gênero eqüidade, igualdade ou isonomia.

No que tange às teorias e práticas de vanguarda sobre o Direito é cogente clarear que a postura extremamente positivista e acrítica de interpretação dos textos legais tem sido combatida de modo ferrenho e gradualmente substituída por uma interpretação holística, voltada para a totalidade e unissonidade do Direito. Torna-se arcaica e inaplicável a lei interpretada em si mesma. Urge o resgate do antropocentrismo em substituição ao lexcentismo. Daí ressai a Teoria Tridimensional do Direito, proposta por Miguel Reale, a qual insere a norma reguladora do fato social concreto dentro de um âmbito axiológico, ou seja, a lei só será eficiente se aplicada em respeito aos valores da coletividade a qual se aplica.

Como futuros operadores do Direito e integrantes de uma era humanística e sociológica, temos a importante responsabilidade de despojar o Direito do seu excesso de formalidade e estender a sua aplicação a todos os cidadãos de maneira o mais subjetiva possível. Já não nos é admissível a concepção de um Direito divorciado da axiologia filosófica da ética e da moral, como previa o neokantismo e o kelsenismo.

Desta feita, um Estado Democrático de Direito, em todos os seus ramos, reger-se-á pelos princípios e fundamentos consagrados na sua “Certidão de Nascimento”, ou seja, em sua Constituição Federal.

Conforme o inciso III do artigo 1º da nossa Lei Maior, a dignidade humana é um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. Portanto, todas as normas infraconstitucionais têm que estar baldrameadas neste princípio, sem a necessidade de que todo diploma legal o traga expressamente, bastando, portanto, que ele ali se instale de modo implícito e tácito ou ainda, sob outra designação.

Quanto ao princípio da igualdade, ou isonomia, ou eqüidade consagrado no artigo 5º da Carta e ratificador do princípio da dignidade humana, não está isolado neste artigo, mas o seu efeito se dissemina por toda legislação pátria.

Todos os princípios são interligados e intergarantidores, todos decorrem uns dos outros e se reforçam mutuamente. Portanto, não há como se falar em princípio da dignidade humana sem o princípio da isonomia, ou o princípio da liberdade, ou o princípio da legalidade, ou o princípio da razoabilidade, Enfim... Não há como dissociar os princípios norteadores e capitais da democracia brasileira, senão para fins de estudo dogmático. Na realidade factual, podemos adotar uma postura organicista e considerá-los como células de um mesmo tecido; ou tecidos de um mesmo órgão; ou órgãos de um mesmo sistema; ou sistemas de um mesmo organismo. Em todo organismo legal, o sacrifício de um princípio significa nefastamente o comprometimento de toda estrutura judicial.

Não obstante aprecie prescindível, gostaria de cometer o pecado da redundância e deixar claro que o princípio da igualdade ora referido, não se confunde com o princípio da igualdade objetiva ou formal que iguala convencionalmente todos os homens, como numa sociedade de clones idênticos. É patente que esta visão do princípio da igualdade formal, há muito abandonada pelos doutrinadores, mas infelizmente, remanescente na compreensão de alguns operadores do Direito menos informados, é um fomento à injustiça e um desvirtuador do Estado Democrático de Direito. Contrário senso, a igualdade sugerida é a igualdade subjetiva, a igualdade consagrada pelo nosso ordenamento e que tem como mote, “a igualização dos desiguais pela outorga de direitos sociais substantivos”[1].

Quanto à discussão em questão, é manifesta a relação de vinculação incondicional entre a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 que originou o Código de Proteção e Defesa do Consumidor e a Constituição Federal da República do Brasil. Não fosse a necessidade insofismável da tutela legal do consumidor e a imprescindibilidade de que essa tutela se fizesse de uma maneira efetiva, a presente lei poderia ser considerada tão somente como Lei Complementar, vez que tem sua previsão expressa no inciso XXXII do artigo 5º da Constituição Federal o qual estabelece que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Destarte, ficou transparente a intenção do legislador originário em conferir maior proteção ao consumidor visando, sem nenhuma dúvida, os princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia. Todavia, optou-se pela codificação pelos motivos apresentados pelos autores do anteprojeto.



“Primeiramente, dá homogeneidade a um determinado ramo do Direito, possibilitando sua autonomia. De outro, simplifica e clarifica o regramento legal da matéria, favorecendo, de uma maneira geral, os destinatários e os aplicadores da norma”.[2]

O Código de Defesa do Consumidor se nos apresenta como a ferramenta concreta para a realização de um fundamento constitucional. Não lhe facultando, por conseguinte, em nenhum momento dissociar-se desta ou de qualquer dos seus princípios, sob pena de tornar-se com ela colidente e, conseqüentemente, inaplicável. Conclui-se, pois, que todos os princípios constitucionais estão contidos em todas as normas infraconstitucionais, inclusive no Código de Defesa do Consumidor. Ainda que se amparem em designação distinta (princípio da vulnerabilidade, in casu), a substância tem que ser a mesma.

Ainda, à luz da obra citada, podemos detectar a relação estreita que existe entre o princípio da vulnerabilidade e o da eqüidade em vários momentos. Ao reconhecer os consumidores como parte vulnerável da relação no mercado de consumo, os autores do anteprojeto justificaram essa vulnerabilidade pelo “tratamento desigual para partes manifestamente desiguais”.[3] Valem-se, portanto, da legenda característica do princípio da igualdade substancial, constitucionalmente afiançado para justificar o princípio da vulnerabilidade constante do Código de defesa do Consumidor.

A definição do princípio da vulnerabilidade feita pelos autores permite uma interpretação das mais singelas de que o princípio da vulnerabilidade é apenas uma variante nominal do princípio da isonomia.

A idéia de igualdade e vulnerabilidade remonta a tempos longínquos, haja vista que já era propagada pelo industrial Henry Ford na célebre frase “O consumidor é o elo mais fraco da economia; e nenhuma corrente pode ser mais forte do que seu elo mais fraco”. Todavia, essa nova interpretação encontra-se abalizada, pura e simplesmente, em seu caráter ilustratório, haja vista que, se levarmos em consideração os valores da época em que foi dita, mormente seu autor, temos que tal idéia visava tão somente a igualar os consumidores de poderes aquisitivos e consumistas, certamente ele jamais cogitou a igualdade de direitos. Segundo sua teoria, a capacitação consumeirista do maior número possível de pessoas aumentaria monstruosamente os ganhos dos industriais que apostassem na produção menos dispendiosa e mais célere do modelo de produção (linha de montagem) por ele concebido.

Caso análogo ocorreu no Brasil de 1850, quando a Inglaterra pactuou um acordo com D. Pedro II, proibindo a entrada de negros vindo da África no território tupiniquim e iniciando uma campanha político-econômica radical para a abolição da escravatura e a declaração de “igualdade” de direitos dos negros. Em nenhum momento podemos crer que os britânicos estivessem se importando com a qualidade de vida da população negra do Brasil, mas visavam garantir poder aquisitivo ao imenso contingente de consumidores potenciais para suas mercadorias.

É nesse mesmo sentido que devemos entender as palavras de Ford, contudo nada nos impede que as utilizemos e as interpretemos de acordo com a nossa realidade contemporânea, ou seja, uma realidade com fins humanísticos e igualitários, uma realidade que prima pela igualdade e liberdade dos homens, em que o Direito só pode ser concebido em toda a sua tridimensionalidade. Por isso, é que a Constituição Federal buscou munir o nosso ordenamento jurídico de artifícios legais para garantir proteção do hipossuficiente, criando uma igualdade substancial entre o consumidor e o fornecedor; entre o trabalhador e o empregador, dentre outros. Sendo assim, o ordenamento jurídico brasileiro se apresenta provido de dispositivos capazes de estabelecer um equilíbrio justo nas mais diversas relações jurídicas (dentre esses dispositivos está o princípio da isonomia convertido em princípio da vulnerabilidade no Código de defesa do Consumidor).

O Direito é unitário, esquartejá-lo em ramos completamente incomunicáveis é crime contra o bom senso e a principiologia básica. Todos os ramos do Direito são partes indissociáveis e intercomunicantes, logo não há que se distinguir entre um princípio constitucional e um princípio do Direito Civil ou Administrativo, ou Comercial. Todos os princípios infraconstitucionais devem ser obrigatoriamente harmônicos e convergentes para a Constituição Federal. Não se admite que um princípio constitucional esteja ausente em qualquer norma inferior. Os liames que interligam os vários ramos do Direito entre si e com os princípios axiológicos e teleológicos constitucionais não podem ser desfeitos sob pena de se esquartejar também a democracia.

Ratificando a tese de que tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o princípio da vulnerabilidade integrante deste são gêneros de uma mesma espécie, Roberto Senise Lisboa, reconheceu:

“O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor decorre do princípio constitucional da isonomia, partindo-se a idéia segundo a qual os desiguais devem ser tratados desigualmente, na proporção de suas desigualdades, a fim de que se obtenha a igualdade desejada”[4]

Com o mesmo entendimento Maria Celina Bobin de Moraes, em citação de Alinne Arquete Leite Novais assevera que:

“Assim é que qualquer norma ou cláusula negocial, por mais insignificante que pareça, deve se coadunar e exprimir a normativa constitucional. Sob essa óptica, as normas de direito civil necessitam ser interpretadas como reflexo das normas constitucionais. A regulamentação da atividade privada (...) deve ser, em todos os seus momentos expressão da indubitável opção constitucional de privilegiar a dignidade da pessoa humana (...)”[5]

Conclui-se facilmente destas citações que a aplicação dos princípios elencados no artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor, inclusive o princípio da vulnerabilidade, a todas as relações jurídicas de cunho consumeirista é uma decorrência do reconhecimento da normatividade dos princípios supremos da Constituição Federal.

Ainda na intenção de corroborar a identidade entre os princípios, revelam-se mui pertinentes as palavras do advogado especializando em Direito Empresarial pela Escola Superior de Advocacia de Minas Gerais e em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas, Dr. Tiago Maranduba Schröder, em artigo publicado Publicada no Juris Síntese nº 29 - MAI/JUN de 2001. Cujo trecho ora transcrevo:

"Todos são iguais perante a lei", igualdade, isonomia, eqüidade (no sentido aristotélico do termo), seja como for denominado, significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Este o fundamento do Código de Defesa do Consumidor. Verificando que numa sociedade massificada o consumidor se apresentava em posição bastante inferior ao fornecedor, o legislador ordinário, atendendo aos auspícios constitucionais, criou mecanismos, substanciais e adjetivos, que antes de constituir privilégios, são aplicação do princípio da isonomia. (...) Isonomia que não fica sujeita a critérios discricionários, advém da Lei Maior, que previu a vulnerabilidade do consumidor frente ao fornecedor, assim como o fez para os particulares perante o Poder Público e com os trabalhadores perante os empregadores. Distinções que podiam e deviam ser feitas pelo Poder Constituinte Originário, conquanto representassem os anseios do povo”.[6]

Com entendimento similar, para o consultor de empresas, Luiz Otavio de Oliveira Amaral, o princípio da vulnerabilidade é:

“O princípio dos princípios, não se trata de presunção legal (logo inadmissível prova em contrário), mas de pressuposto fático necessário à justa equação das relações de consumo. O consumidor já por definição é vulnerável, sendo, pois, esta a sua característica imanente, sua qualidade intrínseca e indissociável. É, enfim, a aplicação plena do principio natural/constitucional da isonomia (tratar desigualmente segundo as desigualdades)”[7]

Em palestra proferida no CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS da EMERJ - FÓRUM PERMANENTE, o palestrante Defensor público Dr José Augusto Garcia de Sousa dissertou sobre o tema: "PROBLEMAS PROCESSUAIS DO CÓDIGO DO CONSUMIDOR", em determinado momento de sua palestra declarou que:

”O Código de Defesa do Consumidor veio em prol de uma isonomia material, substancial. Então, aqui há dispositivos altamente favoráveis ao consumidor para que se obtenha essa isonomia material, substancial; e as vantagens a favor do consumidor devem ser na medida certa para que se busque essa isonomia material (...) esse Princípio da Vulnerabilidade vai refletir Princípios Constitucionais”.[8]

Conforme as citações supra, a Constituição Federal de 1988, consagrou princípios gerais da cidadania que não podem ser desprezados pelo juiz ou qualquer outro profissional da área jurídica, quando da apreciação da realidade fenomenológica. Mas, tais princípios constitucionais, como o caso daqueles que se encontram no preâmbulo do texto Constitucional, por exemplo, a segurança, o bem estar, a igualdade da justiça, o desenvolvimento, a dignidade da pessoa humana, etc., nem sempre estão taxativamente expressos na legislação infraconstitucional. Não podemos principiar o estudo da Organização do Estado brasileiro pelo artigo primeiro de sua Constituição Federal, muito ao contrário, devemos considerar a introdução da Carta Magna que se dá no seu preâmbulo que também é parte do texto constitucional, inserindo, e tornando visível para os intérpretes, princípios que devem ser seguidos por todos aqueles que tiverem sob sua égide.

O fundamento do Estado Democrático de Direito é a cidadania fortalecida e em função do caráter cidadão da nossa Constituição, o legislador foi estimulado a criar uma lei verdadeiramente cidadã que é o Código de Defesa do Consumidor, dentre outras. Nunca é pleonástico ressaltar que o caráter do Código de defesa do Consumidor é principiológico, ou seja, prescinde da referência do princípio constitucional a que se refere em todos os diplomas legais, posto que estes estão esparzidos por todos os textos legislativos, bastando para identificá-lo, uma simples destreza de interpretação constitucionalística voltada para o ontológico e não para o regulamento frio e cristalizado da lei. Em que pese já se tenha passado 15 anos da promulgação da Constituição Cidadã, muitos intérpretes ainda estão arraigados à cultura jurídica anterior em que só havia no panorama jurídico nacional leis normativas petrificadas em textos escritos que previam solução só para os casos concretos.

Muito ao contrário do que se possa imaginar, o princípio da vulnerabilidade do consumidor não é aquele que sempre acoberta o consumidor e que lhe dá razão incontinenti, mas reconhece a sua hipossuficiência frente ao poder do fornecedor. Não raro a lei reconhece a desonestidade de algum consumidor aventureiro e lhe imputa as conseqüências do fato. O fornecedor não fica refém de um sistema protecionista, pois tem assegurados os direitos do contraditório e da ampla defesa inseridos no princípio do devido processo legal, valendo-se dos instrumentos necessários para a defesa dos seus direitos, como os artigos 301 e incisos, 265, IV, a, e 267, IV, todos do Código de Processo Civil, dentre outros.

O artigo 5º da Constituição Federal em seu inciso XXXII, ao estabelecer que o Estado deve promover a defesa do consumidor, assegurou essa proteção ao cidadão como um direito fundamental, destarte reconheceu a vulnerabilidade do consumidor na relação de consumo. Vulnerabilidade esta que, se se aplicasse a imparcialidade absoluta da isonomia formal, quebraria o equilíbrio entre as partes e a dignidade da pessoa humana. Por isso o Código de Defesa do Consumidor tem a função primordial de tutelar o consumidor hipossuficiente e reequilibrar as relações de consumo, sem ferir o princípio constitucional da isonomia, tratando os desiguais de modo desigual. Seguindo este raciocínio, conclui-se que a proteção jurídica conferida ao consumidor lhe proporciona o acesso à justiça real, o que significa o equilíbrio no contraditório e a equiparação de armas dos litigantes.

Nelson Nery Junior observa que:

“Deve-se buscar a paridade das partes no processo no seu sentido efetivo, de fato, e não somente a igualdade jurídica formal, uma vez que esta última seria facilmente alcançável com a adoção de regras legais estáticas (...)Tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, é a substância do princípio da isonomia”.[9]

Sem sombra de dúvida, o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor é a “prima ratio” do Código de Defesa do Consumidor em garantia à realização do princípio da isonomia garantido na Constituição Federal. Pois, fosse o consumidor equânime ao fornecedor, não haveria hipossuficiência e, por conseguinte, a isonomia formal poderia ser mantida, não se justificando a edição de uma lei com caráter protetor. Em outras palavras,a vulnerabilidade do consumidor é o próprio fundamento da existência do Código de Defesa do Consumidor. João Batista de Almeida enfoca o princípio da isonomia, dentre os princípios específicos aplicáveis à tutela do consumidor, como pilar básico que envolve essa problemática. Ele assevera que:

“Os consumidores devem ser tratados de forma desigual pelo CDC e pela legislação em geral a fim de que consigam chegar à igualdade real. Nos termos do art. 5o da Constituição Federal, todos são iguais perante a lei, entendendo-se daí que devem os desiguais ser tratados desigualmente na exata medida de suas desigualdades”.[10]

O privilégio fático e, portanto, a hipersuficiência técnica e econômica do fornecedor reside no fato de ele possuir, via de regra, a técnica da produção que vai de acordo com seus interesses e o poder econômico superior ao consumidor. A vulnerabilidade do consumidor é patente, e a sua proteção como uma garantia é uma conseqüência da evolução jurídica pela qual passamos. O Código de Defesa do Consumidor é a concretização da prestação jurisdicional em saudação ao princípio constitucional da eqüidade incrustado de forma tácita, porém irrefragável, no referido diploma.

Ignorar a necessidade do Código de Defesa do Consumidor no nosso ordenamento seria permitir que as relações jurídicas entre as pessoas potencialmente desniveladas fossem travadas com o mesmo grau de liberdade e privilégios, conforme praticado no modelo jurídico sepultado pela Constituição Cidadã.

Com a preponderância de um tratamento desigual para pessoas desiguais, levando em conta que o consumidor está em situação de manifesta inferioridade frente ao fornecedor de produtos e serviços, não há que se questionar a legitimidade da presença do princípio da isonomia no Código de Defesa do Consumidor, não apenas no inciso I do artigo 4º, mas na totalidade do seu corpo legal. A permuta terminológica pelo princípio da vulnerabilidade foi um mero capricho do legislador que procurou dar especificidade ao princípio da eqüidade que é mais genérico. Poderíamos compreender, de tal sorte, que princípio da vulnerabilidade é o princípio da igualdade aplicado especificamente às relações de consumo.

Outra questão relevante no rebatismo do princípio em tela é a efetiva garantia de que nenhum julgador legalista e conservador tendesse a aplicar a igualdade formal ou objetiva, deixando assim o consumidor em franca desvantagem. Contudo, quando determinado o principio da igualdade substancial (como foi feito na avaliação de Direito do Consumidor), nenhuma dúvida resta quanto à desigualdade reconhecida pela própria lei.

Em nossa formação diuturna é imperiosa a compreensão do Direito atuando sobre os fatos reais e não sobre questões teórico-jurídicas. Devemos sempre ter presente a sua dinamicidade em domínio à sua estaticidade. Infelizmente não basta que tão somente nós, os graduandos, consigamos vislumbrar essa face holística do Direito contemporâneo. Tão importante quanto a prontidão acadêmica, é a prontidão doutrinária e didática do professor universitário para acolher e conduzir tal clientela rumo ao Direito libertário. Desta feita, devemos todos, docentes e discentes, concebê-lo atrelado aos fatos sociais hodiernos que correm contra o tempo e evoluem de forma agílima e, muitas vezes, surpreendente, atropelando os lineamentos estruturais outrora vigentes.

“Não é a lei, pois, que sempre muda a realidade social, mas esta que exige adequação das normas a um novo tempo, o que se efetiva através da função desbravadora da jurisprudência. O julgador, inserido na realidade de seu tempo, não pode negar-se a julgar por omissão da lei, nem aplicá-la com os olhos postos no passado, mas sintonizado com a dinâmica social. A imobilidade e alienação à realidade só podem conduzir à injustiça. Justa é a decisão que mantém o ordenamento jurídico vivo e sintonizado com a realidade" ( in Ap. 193051083, 4a CCTARSP, rel. Márcio Oliveira Puggina)

Além isso, não podemos olvidar de reconhecer o princípio da hierarquia legal. A Constituição Federal é soberana a toda e qualquer forma legal existente. Nenhuma outra lei pode contradizê-la ou ignorá-la. O silogismo é primário: “se os princípios regem a Constituição Federal e a Constituição Federal rege todas as leis infraconstitucionais; logo, todas as leis infraconstitucionais são regidas pelos princípios constitucionais”. Nenhuma lei, norma, decreto, portaria, enfim... Nenhuma disposição de lei escapa a esta regra. Os princípios constitucionais encontram-se gravados em todos as leis brasileiras e ninguém, sob qualquer pretexto, pode desconsiderar esta regra basilar do Direito e excluir, por seu alvitre, um princípio constitucional de qualquer norma infraconstitucional.

Outro instituto do Código de defesa do Consumidor é a permissão da inversão do ônus da prova em favor do consumidor sempre que verossímil sua alegação. Trata-se de outro momento de aplicação do princípio constitucional da isonomia, pois o consumidor como parte hipossuficiente na relação de consumo, tem de ser tratado de forma diferente, a fim de que seja alcançada a igualdade real entre os partícipes da relação de consumo. Mais uma vez o Direito vale-se da máxima ruibarboseana de que a democracia e a verdadeira justiça se baseiam em considerar desigualmente os desiguais, desigualdade essa reconhecida pela própria lei.

Não resta a mínima dúvida de que a lei de proteção do consumidor municiou o Judiciário de instrumentos jurídicos adequados para restabelecendo o equilíbrio e a igualdade nas relações de consumo profundamente abalada pela nova ordem de mercado.

O Direito do Consumidor não é matéria auto-suficiente, ao contrário, apresenta nuances do Direito Civil, Penal, Constitucional, Administrativo, Tributário, Internacional, Comercial, Econômico, Processual, Penal, etc. Faz-se imperativo para o entendimento global e aplicabilidade da matéria, o entrelaçamaneto com as outras disciplinas. Um entendimento isolado do Direito do Consumidor nos deixará completamente alheios da sua aplicabilidade prática, favorecendo, de tal sorte, o exasperado positivismo, conservadorismo, intransigência e obstaculação crítica e doutrinária na aplicação do Direito em comprometimento do exercício da justiça.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMEIDA, João Batista de. A Proteção Jurídica do Consumidor, 2 ed., São Paulo: Saraiva, 2000.

AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Os transgênicos e o consumidor brasileiro: Nações Unidas na Defesa do Consumidor", CNDC/MJ, Brasília, 1986.

FUX, Luiz. Revista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Volume 4. n.° 15. 2001.

GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos; FINK, Daniel Roberto; FILOMENO, José Geraldo Brito; WATANABE, Kazuo; JUNIOR, Nelson Nery; DENARI, Zelmo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado Pelos Autores do Anteprojeto, 7 ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

LISBOA, Roberto Sanise, Responsabilidade civil das relações de consumo. São Paulo: Ed. Revista dos tribunais, 2001.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Manual do Consumidor em Juízo, 2 ed., São Paulo: Saraiva, 1998.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 1998.

MATOS, Cecília. O Ônus da Prova no Código de Defesa do Consumidor, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de direito da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Professor Doutor Kazuo Watanabe, 1993.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. Editora Malheiros. 2002.

NERY JÚNIOR, Nelson. Os princípios gerais do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, n. 3, set./dez., 1992.

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REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

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SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo. 20 ed. São Paulo: Malheiros editores, 2002.

SOUZA, José Augusto Garcia de. Problemas processuais do código do consumidor. In ata da 15ª reunião do fórum permanente dos juízos cíveis. 24/04/2001, às 10 horas.

WATANABE, Kazuo, Anotações de palestra proferida no XXI Encontro Nacional de Defesa do Consumidor, ocorrido em João Pessoa /PB em 21.06.01.


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[1] SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo. 20 ed. São Paulo: Malheiros editores, 2002, p. 210.

[2] GRINOVER, Ada Pellegrini...[et al.]. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 09.

[3] Ibdem, p. 17.

[4] VAL, Olga Maria do, política nacional das relações de consumo. Apud. LISBOA, Roberto Sanise, Responsabilidade civil das relações de consumo. São Paulo: Ed. Revista dos tribunais, 2001, p. 84.

[5] MORAES, Maria Celina Bobin de, A caminho de um direito civil constitucional. Apud. NOVAIS, Alinne Arquete leite. A teoria contratual e o Código de defesa do Consumidor. São Paulo: revista dos tribunais, 2001, p.83.

[6] Schröder, Tiago Maranduba. In Aspectos da defesa do consumidor em juízo: a inversão do ônus da prova nas ações de repetição de indébito. Juris Síntese nº 29 - MAI/JUN de 2001

[7] AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Os transgênicos e o consumidor brasileiro: Nações Unidas na Defesa do Consumidor", CNDC/MJ, Brasília, 1986. O autor é consultor de empresas, advogado militante e professor da Fac. de Direito da Univ. Católica de Brasília-UCB, ex-diretor de Faculdade de Direito em Brasília. Já assessorou Ministros de Estados (Justiça, Desburocratização), foi Secretario geral do Cons.Nac.Defesa do Consumidor-CNDC/MJ, desde o inicio até o fim da elaboração do anteprojeto do Código do Consumidor-CDC. Foi responsável pela estruturação e implantação da defesa do consumidor no Brasil (Procons, Promotorias, delegacias policiais, juizados especiais e entidades comunitárias). É autor de várias obras e artigos jurídicos publicados. Foi um dos primeiros a escrever acerca do tema, inclusive formulando a política inicial do setor e sendo o primeiro executivo da defesa do consumidor na esfera federal.

[8] SOUZA, José Augusto Garcia de. Problemas processuais do código do consumidor. In ata da 15ª reunião do fórum permanente dos juízos cíveis. 24/04/2001, às 10 horas.

[9] NERY JÚNIOR, Nelson. Os princípios gerais do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, n. 3, set./dez., 1992.

[10] ALMEIDA, João Batista de. A Proteção Jurídica do Consumidor, 2 ed., São Paulo: Saraiva, 2000.