Assim como a dor é uma manifestação
orgânica indicativa de que algo está em mau funcionamento com o corpo, o crime
é, de igual modo, uma manifestação sugestiva de um mau funcionamento no
organismo social.
Não seria, portanto, equivocado
concluir que o Estado, em sua auto-organização, define o tipo de criminalidade
que lhe será inerente. Em outras palavras, é o próprio Estado o gênio criador
da criminalidade.
A escolha dos bens jurídicos já
demonstra o tipo de preocupação de determinada cultura com relação aos valores
que pretende salvaguardar. Tanto é verdade, que em algumas culturas temos a
oportunidade de ver tutelados bens jurídicos que para nós não possuem qualquer
significância, sendo verdadeira a recíproca.
Numa sociedade capitalista, nada
mais natural que valores inerentes ao patrimônio tenham um significado
substancial, enquanto valores relacionados à honra, por exemplo, sejam tratados
com menos importância. Ao contrário do que ocorre em sociedades teístas.
Pode-se supor, portanto, haver uma
antevisão legislativa quanto aos aspectos vulneráveis da sociedade em dado
momento espaciotemporal.
Todavia, não há como esperar do
legislador uma absoluta capacidade visionária e, portanto, algumas condutas só
passam a figurar no rol daquelas proibidas à medida que começam a afetar a paz
social. Mas como delimitar o que afeta a paz social numa sociedade que vive sem
paz social?
É sabido que todo valor é medido e
considerado a partir do seu oposto. Dá-se tanto valor à vida, porque a morte é
certa; preocupamo-nos tanto com a saúde porque sabemos da possibilidade de
adoecer. Assim, o desassossego social deve ser reprimido a fim de que se
estabeleça a paz social. Mas como? Já que a sociedade contemporânea vive em
constante estado de aflição, sem parâmetros para estabelecer o que, enfim seja
um estado de paz social.
Bem, não é por falta de
parâmetro que o Estado pode se omitir em promover o bem comum. Devendo partir,
assim, do critério de razoabilidade. Pois, mesmo não sabendo o que é razoável,
é certo que todos sabem o que não é razoável. E até para o mais ignorante dos
homens, essa pergunta não apresenta nenhuma dificuldade de resposta.
E é com base no que não é razoável
que o Estado tem dever de agir, deixando de ignorar as “dores” que sente para
impedir a instalação definitiva da doença.
Nessa visão de verdadeira
dialeticidade entre o Estado e o crime é possível identificar o surgimento de uma
nova conduta contrária ao direito, qual seja a reação violenta de populares em
face de ações criminosas.
Pessoas sem qualquer tendência para a violência resolvem, sem qualquer
medida de proporcionalidade com a ofensa, adotar a prática da autotutela vedada pelo direito. Na
medida em que o Estado proibiu ao cidadão agir manus propria, avocou
para si a responsabilidade de punir os comportamentos daqueles que se
desviassem das normas de convívio social. Por outro lado, na medida em que o
Estado se revela cada vez mais ineficaz em cumprir o pacto que tem com a
sociedade, acaba, por via reflexa, “devolvendo” ao cidadão o “direito” de
promover pessoalmente a defesa do seu próprio bem jurídico.
O maior problema da reação pessoal é que ela é sempre violenta e
desmedida, ou seja, a reação da vítima acaba sendo, quase sempre, muito mais
violenta do que a ação do criminoso e não há qualquer critério jurídico para
aplicação de proporcionalidade. Um crime contra o patrimônio, se punido por
populares, vai certamente atingir, no mínimo, a integridade física do autor, sendo este um bem jurídico de valor muito mais elevado do que aquele.
Não há como se pretender legitimar
tais condutas – que extrapolam, e muito, os limites da legítima defesa – ainda
que se tenha em mente o atual estado de opressão e acuo em que vive a maioria
das pessoas, principalmente aquelas que vivem nos grandes centros urbanos, onde
prevalece a violência e o sentimento de medo, de insegurança. Mais uma vez a
inatividade do Estado determina o perfil criminológico social. Como as
pessoas não se sentem seguras sob a tutela estatal, também não se intimidam em transgredir suas leis,
pois o sentimento de impunidade que impulsiona o delinquente é o mesmo que
encoraja cidadão a reagir violentamente a uma agressão injusta.
A solução, por certo, não está na mera atuação estatal em face dos
cidadãos que agirem dessa forma, mas sim na adoção de práticas que impeçam a
instauração desse estado de todos contra todos. O Estado tem que se impor como
órgão protetivo dos bens juridicamente tutelados e atuar de modo a coibir efetivamente práticas criminosas. Somente com a restauração da confiança do seu povo e o estabelecimento de um estado de paz social, com atuação eficaz no sentido de
promover a ressocialização do delinquente, será possível transformar criminosos
em cidadãos ao invés de cidadãos em criminosos.
Se,
conforme dito, o crime para a sociedade se equipara à dor para o corpo,
necessário que o tratamento, conquanto sofrido, seja levado a efeito, sob pena
de generalização da doença e perecimento de todo o organismo.