sábado, 30 de março de 2013

O Estado como gênio criador da criminalidade

            Assim como a dor é uma manifestação orgânica indicativa de que algo está em mau funcionamento com o corpo, o crime é, de igual modo, uma manifestação sugestiva de um mau funcionamento no organismo social.
            Não seria, portanto, equivocado concluir que o Estado, em sua auto-organização, define o tipo de criminalidade que lhe será inerente. Em outras palavras, é o próprio Estado o gênio criador da criminalidade.
            A escolha dos bens jurídicos já demonstra o tipo de preocupação de determinada cultura com relação aos valores que pretende salvaguardar. Tanto é verdade, que em algumas culturas temos a oportunidade de ver tutelados bens jurídicos que para nós não possuem qualquer significância, sendo verdadeira a recíproca.
            Numa sociedade capitalista, nada mais natural que valores inerentes ao patrimônio tenham um significado substancial, enquanto valores relacionados à honra, por exemplo, sejam tratados com menos importância. Ao contrário do que ocorre em sociedades teístas.
            Pode-se supor, portanto, haver uma antevisão legislativa quanto aos aspectos vulneráveis da sociedade em dado momento espaciotemporal.
            Todavia, não há como esperar do legislador uma absoluta capacidade visionária e, portanto, algumas condutas só passam a figurar no rol daquelas proibidas à medida que começam a afetar a paz social. Mas como delimitar o que afeta a paz social numa sociedade que vive sem paz social?
            É sabido que todo valor é medido e considerado a partir do seu oposto. Dá-se tanto valor à vida, porque a morte é certa; preocupamo-nos tanto com a saúde porque sabemos da possibilidade de adoecer. Assim, o desassossego social deve ser reprimido a fim de que se estabeleça a paz social. Mas como? Já que a sociedade contemporânea vive em constante estado de aflição, sem parâmetros para estabelecer o que, enfim seja um estado de paz social.
            Bem, não é por falta de parâmetro que o Estado pode se omitir em promover o bem comum. Devendo partir, assim, do critério de razoabilidade. Pois, mesmo não sabendo o que é razoável, é certo que todos sabem o que não é razoável. E até para o mais ignorante dos homens, essa pergunta não apresenta nenhuma dificuldade de resposta.
            E é com base no que não é razoável que o Estado tem dever de agir, deixando de ignorar as “dores” que sente para impedir a instalação definitiva da doença.
            Nessa visão de verdadeira dialeticidade entre o Estado e o crime é possível identificar o surgimento de uma nova conduta contrária ao direito, qual seja a reação violenta de populares em face de ações criminosas.
Pessoas sem qualquer tendência para a violência resolvem, sem qualquer medida de proporcionalidade com a ofensa, adotar a prática da autotutela vedada pelo direito. Na medida em que o Estado proibiu ao cidadão agir manus propria, avocou para si a responsabilidade de punir os comportamentos daqueles que se desviassem das normas de convívio social. Por outro lado, na medida em que o Estado se revela cada vez mais ineficaz em cumprir o pacto que tem com a sociedade, acaba, por via reflexa, “devolvendo” ao cidadão o “direito” de promover pessoalmente a defesa do seu próprio bem jurídico.
O maior problema da reação pessoal é que ela é sempre violenta e desmedida, ou seja, a reação da vítima acaba sendo, quase sempre, muito mais violenta do que a ação do criminoso e não há qualquer critério jurídico para aplicação de proporcionalidade. Um crime contra o patrimônio, se punido por populares, vai certamente atingir, no mínimo, a integridade física do autor, sendo este um bem jurídico de valor muito mais elevado do que aquele.
            Não há como se pretender legitimar tais condutas – que extrapolam, e muito, os limites da legítima defesa – ainda que se tenha em mente o atual estado de opressão e acuo em que vive a maioria das pessoas, principalmente aquelas que vivem nos grandes centros urbanos, onde prevalece a violência e o sentimento de medo, de insegurança. Mais uma vez a inatividade do Estado determina o perfil criminológico social. Como as pessoas não se sentem seguras sob a tutela estatal, também não se intimidam em transgredir suas leis, pois o sentimento de impunidade que impulsiona o delinquente é o mesmo que encoraja cidadão a reagir violentamente a uma agressão injusta.
A solução, por certo, não está na mera atuação estatal em face dos cidadãos que agirem dessa forma, mas sim na adoção de práticas que impeçam a instauração desse estado de todos contra todos. O Estado tem que se impor como órgão protetivo dos bens juridicamente tutelados e atuar de modo a coibir efetivamente práticas criminosas. Somente com a restauração da confiança do seu povo e o estabelecimento de um estado de paz social, com atuação eficaz no sentido de promover a ressocialização do delinquente, será possível transformar criminosos em cidadãos ao invés de cidadãos em criminosos.
            Se, conforme dito, o crime para a sociedade se equipara à dor para o corpo, necessário que o tratamento, conquanto sofrido, seja levado a efeito, sob pena de generalização da doença e perecimento de todo o organismo.